CÃO SEM PLUMAS: DANÇANDO NA LAMA. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.


FOTOS/CAFI

Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem”.

A palavra poética e imagética de João Cabral de Melo Neto volta a assombrar com suas conjunturas mágicas o palco coreográfico. Desta vez com a mais recente criação da Companhia de Dança Deborah Colker – Cão Sem Plumas.

Publicado em 1950 quando de Barcelona, no exercício de seus ofícios consulares, o poeta se iluminou em  “palo seco” com os contrastes/conflitos do homem/caranguejo, na ríspida paisagem do mangue emoldurando a sequidão  fluvial do rio Capibaribe.

E é este elemento metafórico e racional, simbólico e verista, entre a plasticidade insólita e o emotivo em corte laminar, que inspirou a transmutação dos 51 versos seriais  cabralinos em incisiva sequência coreográfica em oito movimentos.

Numa pulsão de linguagens artísticas, integraliza-se em mote único o encontro das estetizadas imagens cinematográficas de Cláudio de Assis com a fisicalidade gestual na idealização de Deborah Colker . 

Ampliada  nos sofisticados acordes pernambucanos da trilha percussiva de Jorge Du Peixe e Lirinha, unindo as sonoridades no maracatu e no coco , domanguebeat  aos efeitos acústicos/eletrônicos de Berna Ceppas.

E enriquecida com o minimalismo funcional das mutáveis estruturas de madeira capazes de extrapolarem das projeções fílmicas objetos realistas, metamorfoseando caixas em  barcos e palafitas, em mais uma das surpresas inventivas de Gringo Cardia.


Que se estende aos simbióticos figurinos (Cláudia Kopke) androginizando os bailarinos no sugestivo mix de lama colada a pele, ressaltados nas transcendências luminares de Jorginho de Carvalho.

Apostando em novas explorações do movimento, mais distanciado dos repiques acrobáticos, a coreografia revela traços da dança urbana com incidências regionalistas e sutis referências clássicas como pontas na lama. Além de incursionar por camaleônicas transformações animistas na representação entre homens, plantas, garças e caranguejos.

Se de um lado o atletismo e a robustez de corpos conflitua  numa ambiência inóspita de fome e seca, há uma sinergia expressiva no contorno da dor e do espanto. Irradiada na corporeidade enlameada onde cada gesto conduz, na organicidade da performance, a um visual barroquista  entre a poesia e o caos.

Nesta sintaxe lógica e sensorial entre a poesia, o cinema, a música e a dança, há apenas um reparo sobre as palavras e os versos do poeta quase inaudíveis neste caudaloso encontro artístico,diante da potencialização da sua partitura sonora. O que, ainda, tornaria mais perceptível o teor conceitual da narrativa cênico/coreográfica, evitando qualquer risco de reiteração monocórdia na materialização do imagético.

No mais,  a expectativa pela prometida versão documentária do espetáculo capaz não só de registrar um momento pulsante de nossa criação cultural. E, indo além de sua temporalidade, por uma sincrônica identidade referencial, no vislumbre de denúncia da viscosa e lamacenta problemática social e política vivenciada neste seco agora.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


CÃO SEM PLUMAS , com a Cia de Dança Deborah Colker, está em cartaz no Theatro Municipal /RJ, quinta e sexta, às 20h30m; sábado, às 17 e às 20h30m;domingo, às 17h. 70 minutos. Até 30 de julho.

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